Por Vítor Correia, eng. Agrónomo, sénior
Desde tempos imemoriais que o acompanhamento das refeições de Consoada e Ceia de Natal é feito com vinho. Tratando-se de um momento de comunhão de familiares e amigos, presentes à mesma mesa, o vinho deve contribuir para reforçar momentos de aconchego e convívio, prolongando as conversas e contribuindo para uma melhor digestão.
Para os cristãos, o vinho é um símbolo de pureza em que todas as impurezas e contaminações foram libertadas pela fermentação. Por isso, na última Ceia, o vinho representou o sangue do próprio Cristo com os seus discípulos que ele mesmo reparte, tal como o pão.
Esta ideia do vinho como símbolo do sangue de Cristo foi consolidado na época medieval, tendo sido por via disso, impulsionado o cultivo da videira para poder ser oferecido a peregrinos, viajantes e doentes. As peregrinações ao Santo Sepulcro ou a Santiago de Compostela, contribuíram para tal dinâmica, já que o vinho cumpria em simultâneo duas funções: dessedentava/hidratava e alimentava, graças ao seu moderado conteúdo em álcool.
O ritual da última ceia repete-se em todas as missas, quando o sacerdote come a hóstia consagrada que simboliza o pão e bebe um pouco de vinho do cálice.
O ritual da Última Ceia é de alguma forma imitado, com o espírito puro do Natal, na comunhão e partilha, em que o vinho cria as condições adequadas. Para tal faremos algumas sugestões, não sem antes reiterar que haverá sempre outras opções de acordo com o gosto pessoal da família, bem como com a combinação de pratos da refeição.
Mas não pensem que até no Natal se livram da Engenharia! Em quase tudo o que se consome de algum modo
intervêm as diferentes especialidades de engenharia e o caso dos vinhos não é diferente.
As propostas que vos trazemos incidem sobre diferentes tipos de vinhos, harmonizados com diferentes pratos, respeitando de algum modo a nossa tradição gastronómica de Consoada e Natal. Importante mesmo é ter em consideração que não haverá qualquer óbice a que se usem diferentes tipos de vinho, para harmonizar com os diferentes “tempos” das refeições.
Entradas
Em Portugal a nossa tradição de entradas contempla alguns frutos secos, queijos, nomeadamente os de ovelha e, fundamentalmente o da Serra ou, nos alentejanos, os amarelos. Mais recentemente, começaram a chegar os “
patês”, “
foie gras” ou “
terrines”.
Em qualquer destas circunstâncias os
vinhos tintos vão bem. No caso dos queijos, de preferência vinhos mais encorpados e até com alguma madeira. Hoje, ultrapassados alguns preconceitos, alguns apreciadores já harmonizam com brancos envelhecidos em casco de carvalho. No caso dos “
patês”, “
foie gras” ou “
terrines”, além das opções referidas são permitidas outras, como um bom
espumante tinto Verde, um ou Dão tinto, ou vinhos tintos palhetes.
No caso dos Dão, recomendável o rigor de temperatura. De uma forma geral um bom Dão é rico em glicerina, que dá ao vinho as características lágrimas no copo e os torna mais suaves e sedosos. Mas, a sua expressão máxima, dá-se com temperaturas de serviço um pouco mais elevadas que um vinho tinto normal.
Hoje a engenharia permite-nos ter “caves eléctricas”, em que é muito fácil ter as temperaturas de conservação e serviço bem reguladas.
No Natal, a temperatura é normalmente mais baixa, contudo na sala de jantar tal não é necessariamente assim. Logo, se a regra é servir um vinho tinto à temperatura da adega, nesta fase, essa temperatura será algo entre os 11-13 graus. Tal temperatura está bem para um tinto Verde como um “vinhão”, já para tintos encorpados ou tanínicos, teremos que ir para os 16 a 18º, e 15 a 16º para os ligeiros/palhetes.
No caso dos tintos, não esqueça de decantar e arejar, fundamentalmente se escolher vinhos envelhecidos
Tenha em atenção estas regras, porque o sucesso da sua escolha dependerá disso. Pequenos gestos demonstrarão o cuidado e o carinho que vota aso seus convidados e o requinte na escolha e no serviço do vinho.
Prato principal
As nossas tradições na Ceia de Natal são muito diversas. Vão desde o borrego, ao cabrito, lombinhos de porco, ao peru, o bacalhau ou o polvo, ou conjugação de vários, fazendo jus ao ditado, “cada terra seu uso, cada roca seu fuso”.
Os
vinhos devem ou ser tintos, com estrutura e taninosos, com alguma frescura e até alguma madeira, principalmente se estivermos perante pratos bem temperados e puxados às especiarias,
ou até alvarinhos, que sendo vinhos brancos têm muita estrutura e capazes de aguentar tudo isto. Os
brancos envelhecidos ou bem estruturados, mas pouco aromáticos também são recomendáveis. O caso de Verde da casta “avesso” pode ser uma excelente companhia para um bacalhau cozido com penca de Chaves.
Obviamente que se a opção do prato recair sobre um assado no forno, como um borrego ou cabrito, a preferência deverá recair ou por um Verde tinto da casta “vinhão”, que acompanha muito bem com iguarias gordas, ou um tinto reserva e taninoso.
O peru, dependendo do recheio, pode ser tanto acompanhado por um branco estruturado, como por um tinto ligeiro. O gosto de cada um ditará a opção certa de escolha.
Embora nos nossos hábitos não caiba o uso de um Porto “LBV” para acompanhamento de uma refeição de carnes no forno, os ingleses fazem-no com frequência. Em menor circunstância, também os Madeiras são utilizados, fundamentalmente na nova Zelândia ou na Austrália, país onde o Madeira é intensamente usado na alta culinária. As temperaturas de serviço devem respeitar a regra dos tintos envelhecidos.
Importante será não esquecer no almoço de dia de Natal a “
roupa velha”, para a qual recomendaríamos um excelente azeite de Trás-os-Montes e o acompanhamento de um bom vinho tinto verde, com uma ligeira frescura, ou outros vinhos tintos também ligeiros para com alguma “
engenharia” contrabalançar algum excesso da noite anterior.
Sobremesas
Para acompanhar a doçaria natalícia, tradicionalmente muito rica em açúcar, mel e ovos, existem no mercado múltiplas opções, pelo que conforme a sobremesa e naturalmente conforme o seu gosto pessoal ou dos seus convivas se farão as decisões.
Não existindo uma regra única para melhor equilíbrio da refeição, o importante é não exagerar na doçura da escolha e ponderar um cruzamento que balance bem o binómio doce-ácido.
Para fugir aos clássicos, ficam algumas sugestões
mais contemporâneas como “Colheita Tardia”, Espumantes , Vinho do Porto e Licorosos/Fortificados.
Sobre os
espumantes já falamos em
artigo anterior e trata-se obviamente de um clássico a fechar uma refeição tradicional. A opção por um “champagne” doc terá apenas a ver com opções de preço ou de requinte a dar à refeição. Em termos de qualidade, salvo as devidas proporções dentro do que é comparável, a opção por um espumante nacional será sempre recomendável. A escolha de um seco, meio seco ou bruto depende do gosto e da sobremesa que irá acompanhar. Mais uma vez o balanceamento entre a doçura do prato e do vinho, deverá ser critério determinante.
Colheita Tardia, designa um vinho feito com uvas vindimadas mais tarde do que o normal, quase transformadas em uvas-passas na videira, portanto com um teor de açúcar elevado. São também designados, como vinhos de “
podridão nobre” ou “
botrytizados”.
De alguma forma, a uva quando se transforma em passa tem um “apodrecimento” do bago, devido ao ataque natural levado a cabo pelo fungo
Botrytis cinerea. Este ataque provoca a desidratação quase total do bago, fazendo com que haja uma grande concentração de açúcares e ácidos (daí chamar-se podridão nobre, já na verdade não inutiliza o bago).
Para que os ataques pelo fungo decorram de maneira nobre (isto porque o mesmo fungo pode apodrecer o bago de modo a inutilizá-lo para a produção de vinho), têm que se estabelecer condições climáticas muito especiais, ou seja, só é possível com uvas maduras e saudáveis, e com cooperação da meteorologia alternando manhãs orvalhadas, de neblina, que incentivam o fungo, com tardes quentes e soalheiras que secam as uvas e impedem a difusão demasiado rápida do bolor. Hoje a engenharia permite-nos reproduzir este processo em ambiente controlado, cortando a parte lenhosa da vinha ainda com os cachos e colocando-os em suporte numa estufa, reproduzindo artificialmente o ideal referido.
Obtém-se como resultado final um vinho adocicado e com frescura, óptimo para acompanhar os nossos doces conventuais mais tradicionais.
Trata-se de uma opção interessante a considerar, pese embora o elevado preço que estes vinhos ainda atingem no nosso mercado.
Os
Vinhos Fortificados são aqueles cuja fermentação alcoólica é interrompida pela adição de aguardente vínica, numa dada altura da fermentação. Como já referimos em artigo anterior, em Portugal são produzidos: o vinho do Porto, da Madeira, de Carcavelos, Moscatel de Setúbal e Moscatel do Douro. Irei apenas referenciar dois vinhos, normalmente menos utilizados pelos portugueses e sobre os quais valerá a pena ter presente para acompanhar a sua sobremesa natalícia.
Os vinhos de
Carcavelos são provenientes da mais pequena das regiões demarcadas portuguesas. Situa-se a cerca de 10 Km de Lisboa e encontra-se totalmente rodeada de urbanizações e corre sérios riscos de total extinção. Demarcada em 1908 teve, muitos anos antes, no Marquês de Pombal o seu principal defensor. Produz um vinho generoso que resulta do loteamento de vinho abafado com vinho seco, ambos feitos de “bica-aberta”, ou seja, sem maceração do mosto com as películas e grainhas. Caracterizada pelas típicas castas: Brancas – Arinto, Boal Ratinho e Galego Dourado; Tintas – Periquita e Preto Martinho. Além de um bom acompanhamento para os típicos doces com frutos secos, serve também como um óptimo digestivo.
Por último o vinho da
Madeira, tão ao gosto de Washington ou Churchill. A declaração da independência dos Estados Unidos foi celebrada com vinho da Madeira, pelo que para os americanos tem uma particular estima.
Trata-se de um vinho sofisticado e complexo no sistema de classificação. Contempla um conjunto de designações que permitem a identificação dos seus diferentes vinhos: “Ano de colheita e Indicação de idade”, “Processo de produção”, “Grau de doçura”, “Cor” e “Estrutura”, “Casta”. Varia em grau de doçura e graduação alcoólica de acordo com a casta utilizada. Da casta Sercial resultam secos, perfumados e de cor clara. A casta Verdelho origina um vinho meio seco, delicado e de cor dourada, enquanto os vinhos da casta Boal têm cor dourada escura e uma textura mais suave. A casta Malvasia produz a variante doce: um vinho com perfume intenso e de cor vermelha acastanhada.
Há engenharia por trás das refeições da Consoada e do Natal.
Excelentes vinhos em óptima companhia nesta Ceia de Consoada e Natal.