
PERFIL
Nome: João Delgado Lourenço
Formação: Mestrado em Engenharia Civil - Construções
Instituição de ensino: FEUP
Função atual: Engenheiro Consultor/Ator
Empresa atual: Machadonurba unipessoal Lda
Empresas anteriores: Águas do Porto, EM; VHM; António Gaspar – Consultores de Engenharia Sanitária, LDA;
Engenheiro e ator, não é habitual. Para quem ainda não o conhece, como resumiria o seu percurso?
A primeira experiência profissional em Engenharia foi nas Águas do Porto, em 2007. Terminei o mestrado em Engenharia Civil – Construções, na FEUP, em 2009, e, nos primeiros anos, estive sempre ligado à Hidráulica. Durante este percurso senti que não estava completo, que faltava algo para poder ser feliz. Eu já tinha feito teatro universitário durante a licenciatura, mas nunca tinha sequer imaginado que o podia fazer profissionalmente. Em 2011, fui acompanhar a namorada numa formação de teatro pós-laboral e nunca mais o larguei. Em 2013 iniciei a licenciatura em Teatro na ESMAE, que terminei em 2016. Nesse mesmo ano, fui interprete na minha primeira experiência profissional de teatro e logo no Teatro Nacional S. João, na peça “Os Últimos dias da Humanidade”, um espetáculo de duração total de 9 horas que aborda o período apocalíptico da Primeira Guerra Mundial. Desde então, tenho dividido a minha vida entre teatro, televisão, cinema e Engenharia. Como diria o Marco Paulo, eu tenho 2 amores, um é o Teatro o outro a Engenharia. Por vezes, um deles é negligenciado, mas depois eu compenso-o.
"Os Civis são dos engenheiros mais divertidos e criativos, (...) que por fora da carapaça de durão é um ser humano bastante aprazível."
João Delgado
De todos os engenheiros, os civis costumam ter a fama de ser os mais “austeros”, como se desmistifica essa ideia?
Penso que a fama de austeros se deve em parte à responsabilidade que a nossa função acarreta. E é um vício que se apreende logo como estudante. Um bom exemplo é o chamado coeficiente de “cagaço”, aplicar ao sistema uma capacidade adicional para o tornar mais seguro e precaver imponderáveis. Mas na verdade, os Civis são dos engenheiros mais divertidos e criativos, para desmistificar essa ideia é preciso conviver com este belo espécime, que por fora da carapaça de durão é um ser humano bastante aprazível.


Em que sentido ser ator ajuda na sua atividade como engenheiro, e vice-versa?
A formação de ator ajuda bastante na interação com o outro, seja um par, um superior ou um funcionário. Há uma clareza e assertividade no discurso que se torna bastante útil. No sentido contrário, posso referir que depois de tirar licenciatura e mestrado em Engenharia Civil o curso de teatro foi bem mais fácil e nas minhas criações próprias existem sempre inputs da Engenharia, nomeadamente estruturas matemáticas que moldam a forma do espetáculo, seja o número de cenas, o número de repetições de certos movimentos e palavras, ou mesmo a duração da performance.

Se tem curiosidade, consulte a agenda do João Delgado e assista aos seus espetáculos. Valerá a pena ver o nosso Engenheiro no palco!
É habitual haver atores/engenheiros. Como reagem os seus colegas atores?
Não é muito comum, sei de outros colegas que estudaram engenharia, mas nenhum deles concluiu o curso. Portanto, alguém que tirou mestrado e continua na área da engenharia é uma raridade. As reações são bastante diversas, mas há sempre uma curiosidade e uma valorização pelo facto de acumular outra vida profissional. Recentemente, fui escolhido para ser intérprete de um espetáculo por acumular as duas valências – A Memória do Aqueduto, um projeto que os diretores artísticos classificaram como “um espetáculo para engenheiros” e que teve lugar no Reservatório do Amial. Este espetáculo já contava com um engenheiro e artista grego e quando o diretor artístico (Carlos Costa) soube que eu também acumulava as duas competências escolheu-me para participar neste projeto que fez parte do festival FITEI.


Como vê a Engenharia que se faz em Portugal, na sua área em concreto? Consegue identificar o melhor e o pior?
Vejo com bons olhos o momento atual da engenharia portuguesa, o sector da construção continua em crescimento e tem demonstrado dinamismo. É curioso observar a evolução, quando estava a estudar engenharia a empregabilidade da área, devido ao Euro 2004, era quase total. Nos anos seguintes, os engenheiros civis tiveram uma passagem pelo deserto, mas no momento as perspetivas são ótimas. Os melhores aspetos são a qualidade da formação, as universidades portuguesas formam engenheiros competentes reconhecidos internacionalmente, e a crescente utilização de novas tecnologias, o que permitem atingir melhores resultados. Os pontos fracos (ou vendo o copo meio cheio – os principais desafios) são a falta de mão de obra qualificada, o aumento dos custos das matérias primas e da mão de obra e a resistência à modernização por algumas empresas que estão no mercado há muitos anos.
"A visão de que as soft skills são algo para adornar o CV e não para aprender, é algo que se faz “en passant”. Na minha opinião, as mais importantes seriam a inteligência emocional, clareza e assertividade na comunicação e adaptabilidade a diferentes meios profissionais."
João Delgado
Acha que a formação dos engenheiros deveria incluir mais soft skills? Se sim, quais julga serem as mais importantes?
Sem qualquer dúvida, não só na formação dos engenheiros, mas em todas as atividades profissionais. É um dos grandes problemas da contemporaneidade, falta de habilidades comportamentais. As excessivas relações digitais tornam-nos incapazes de interagir saudavelmente com o outro. E na engenharia as equipas são bastantes volumosas e diversas, com formações académicas muito dispares. Por isso é urgente apostar na formação de soft skills. Para complicar as coisas, há algo perverso que prejudica muito, a visão de que as soft skills são algo para adornar o CV e não para aprender, é algo que se faz “en passant”. Na minha opinião, as mais importantes seriam a inteligência emocional, clareza e assertividade na comunicação e adaptabilidade a diferentes meios profissionais.

"Se a/o colega estiver a dar os primeiros passos (como ator), penso que a melhor opção é fazer parte de um grupo de teatro universitário, quase todas as faculdades de Engenharia têm um grupo"
Algum/a Engenheiro/a que esteja a ler esta entrevista e que pense ser ator, que conselho lhes daria?
O principal conselho que posso dar é não desistir! A área artística é muito dura, imprevisível, intermitente e pouco rentável. Muitas atrizes e atores abandonam a área num momento de vulnerabilidade e nós nunca sabemos o que está a seguir à curva, pode estar uma grande oportunidade. Por isso, a única coisa a fazer é ser perseverante e resiliente. No entanto, se a/o colega estiver a dar os primeiros passos, penso que a melhor opção é fazer parte de um grupo de teatro universitário, quase todas as faculdades de engenharia têm um grupo e, no Porto, existe o Teatro Universitário de Porto (do qual eu fiz parte entre 2011 e 2013) e que desenvolve um excelente trabalho.


Tendo em conta o panorama atual de Portugal, quais as oportunidades que os engenheiros devem aproveitar? Onde estão as oportunidades, na sua opinião?
Vou restringir-me à engenharia civil e como já referi anteriormente, o mercado de trabalho em Portugal está bastante dinâmico e continua a crescer. As oportunidades estão na reabilitação urbana e habitação; nas obras públicas e infraestruturas (projectos de mobilidade urbana, infraestruturas de abastecimento de água e drenagem de águas residuais e projetos ferroviários) e na sustentabilidade e eficiência energética (certificação energética de edifícios, instalação de energias renováveis e uso de materiais sustentáveis).
"O papel da Ordem é crucial, eu costumo referir que na área artística não temos uma Ordem, (...) mas sem uma Ordem é extremamente difícil chegar a bom porto. Na área artística não existe um curso de Deontologia e Ética, o que eu acho que é escandaloso."
João Delgado
Qual acha que deveria ser o papel da Ordem dos Engenheiros no futuro e na vida profissional dos Engenheiros?
O papel da Ordem é crucial, eu costumo referir que na área artística não temos uma Ordem, existem Sindicatos e Associações que lutam pelos direitos dos profissionais, mas sem uma Ordem é extremamente difícil chegar a bom porto. Outro exemplo que costumo referir é que na área artística não existe um curso de Deontologia e Ética, o que eu acho que é escandaloso. Ora, voltando à Engenharia, na minha opinião este curso tão vital para guiar os engenheiros em situações dúbias deveria necessitar de uma renovação. Porque às vezes, ao longo de um percurso profissional alguns destes valores podem ficar enevoados. Assim como a carta de condução precisa de ser renovada, a Deontologia e a Ética também.
Outra área em que a voz da Ordem é fundamental é na inovação e tecnologia, promovendo a adoção de novas ferramentas informáticas para manter os engenheiros portugueses na crista da onda. Finalmente, e aqui é uma luta em conjunto com a área artística, acelerar a utilização de práticas sustentáveis. Com a crescente importância das questões ambientais é urgente assumir práticas de engenharia mais sustentáveis e com responsabilidade ambiental.
"O curso (Deontologia e Ética) é tão vital para guiar os engenheiros em situações dúbias que deveria necessitar de uma renovação. Porque às vezes, ao longo de um percurso profissional alguns destes valores podem ficar enevoados. Assim como a carta de condução precisa de ser renovada, a Deontologia e a Ética também."
João Delgado
Quais são os maiores desafios que os Engenheiros enfrentam neste século? E os atores?
O maior desafio dos engenheiros é a falta de mão de obra qualificada. A tecnologia continua a evoluir, os equipamentos são cada vez melhores, fazem quase tudo, mas a mão humana vai ser sempre necessária e cada vez mais a qualidade da mão de obra é inferior. Não só é inferior, como já não há brio e paixão pelo trabalho. Todos já trabalhámos com funcionários mais velhos que são mestres, verdadeiros artesãos da sua prática, mas isso foi-se perdendo e os trabalhadores, da área da construção por exemplo, vão para essa área como tábua de salvação, porque não têm outra opção. Ou a mão de obra imigrante, muitas vezes sobrequalificada com formação superior, mas subqualificada para aquele trabalho específico.


No caso do teatro, o grande desafio é batalhar com o telemóvel. Para assistir a um espetáculo de teatro é preciso estar presente durante 1h ou 1h30min, estar presente significa estar em comunhão com as/os intérpretes e com os outros espectadores, e isso não é possível com o telemóvel na mão. A falta de atenção para assistir a algo ao vivo deve-se ao bombardeamento constante de estímulos rápidos dos smartphones que se torna uma adição. O outro desafio é a quantidade de conteúdos que as redes sociais oferecem e a sua fraquíssima qualidade e originalidade. Um espetáculo teatral requer um exaustivo e apuradíssimo trabalho, com o intuito de criar algo original e com elevada qualidade e, neste momento, tem de “competir” com milhões de conteúdos “fast food” disponíveis 24h por dia, 7 dias por semana.
A IA pode substituir atores?
A IA tem benefícios inegáveis, mas tem um lado perverso e nefasto. Neste momento ainda conseguimos distinguir um vídeo gerado por IA, mas haverá um momento em que não vamos conseguir discernir, e aí o flagelo das fake news será um perigo. Quanto à supressão do ser humano, no cinema e televisão esse perigo é real e iminente. Poderá acontecer que dentro de uns anos todos esses conteúdos serão produzidos por IA e isso significa que milhões de atrizes e atores em todo o mundo vão perder o seu emprego. Mas há algo que será sempre invicto e onde a IA não conseguirá chegar, o teatro. O teatro, desde as suas formas primitivas, sempre acompanhou o ser humano e essa ligação entre quem faz e quem assiste, precisará sempre do componente humano. O teatro que se fazia há 2500 anos nos anfiteatros gregos tem o mesmo princípio e ligação entre ator e espectador que o teatro que se faz hoje numa sala de teatro e terá a mesma ligação daqui a 2500 anos.
Nomeie um engenheiro do Norte que esteja a desenvolver um trabalho que aprecie, dentro ou fora de Portugal.
Poderia nomear vários engenheiros que admiro, alguns dos quais criaram empresas que se tornaram líderes da área, mas a minha escolha será afetiva e vou referir o José Pedro Felisberto, meu colega de carteira desde o 7º ano e que tem desenvolvido o seu percurso fora de Portugal, nomeadamente na Roménia, Kosovo, Angola, Macau e agora no Luxemburgo, onde trabalha para o Parlamento Europeu, na Diretoria de Infraestruturas e Logística.


Há futuro onde há Engenheiros? Justifique.
O futuro DEPENDE dos engenheiros! Para responder a esta pergunta eu vou voltar ao passado, a evolução da espécie sempre se deveu a descobertas da engenharia e todos os desafios futuros dependem da criatividade e agudeza dos engenheiros. Neste último espetáculo em que participei, há uma parte do texto que me parece sintetizar na perfeição a importância dos engenheiros, termino então citando o texto Memória do Aqueduto (de Carlos Costa e Jorge Palinhos):
“Nós somos engenheiros, amigo. Desde Arquimedes que os engenheiros servem para resolver tudo e tudo se resolve. Tudo se resolve, meu amigo. (...) O nosso Arquimedes inventou a alavanca para levantar o mundo. E quem levanta o mundo levanta tudo. Levanta a tua cabeça, João, levanta a cabeça e vê a gralha a cantar…”